19 de abril de 2009

UMA CARNIÇA


Lembra-te, meu amor,
do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho,
entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.
As pernas para cima,
qual mulher lasciva,
A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.
Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E para ao cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.
E o céu olhava do alto
a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que
sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.
Zumbiam moscas sobre
o ventre e, em alvoroço,
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como
um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.
E tudo isso ia e vinha,
ao modo de uma vaga
Ou esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer
de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.
E esse mundo emitia
uma bulha esquisita,
Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica
cadência alguém agita
E à joeira deita novamente.
As formas fluíam como um
sonho além da vista,
Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida,
e que conclui o artista
Apenas de memória um dia.
Por trás das rochas irrequieta,
uma cadela
Em nós fixava o olho zangado,
Aguardando o momento
de reaver àquela
Náusea carniça o seu bocado.
- Pois hás de ser como
essa infâmia apodrecida,
Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos,
sol de minha vida,
Tu, meu anjo e minha paixão!
Sim! tal serás um dia,
ó deusa da beleza,
Após a benção derradeira,
Quando, sob a erva e as
florações da natureza,
Tornares afinal à poeira.
Então, querida, dize à
carne que se arruína
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservei a forma e
a substância divina
De meu amor já decomposto!

Charles-Pierre Baudelaire
(Tradução de Ivan Junqueira)


Dedicado ao Pádua, com muito carinho...

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