16 de abril de 2009

INVENTÁRIO

Arrolados todos os bens, no formal da partilha,
deixo terras de continentes e ilhas conhecidas
aos mercadores, aos banqueiros, aos corretores,
aos agiotas, ratos de usura, ladrões públicos,
negociantes e negocistas- são a mesma coisa-
e seus parceiros da raça de Caim.

A Portugal e Espanha deixo os mares
o Atlântico para suas velas redondas e latinas
o Pacífico para que o descubra Balboa
e os oceanos da Índia e o mar da China
e ali
alarguem o mundo e juntem
os mundos do planeta;

Deixo a cada um de seus homens
a coragem de morrer - a coragem de Abel- Caim não teve,
e só a quem ousa a bravura de morrer
é lícita a virtude, a coragem limpa de matar.

Deixo a cada um de seus varões
umas armas de fogo e ferro frio
e gosto para usá-las- em grito d'armas: a espada
do Capitão José de Barros Lima, o Leão Coroado- a forca
do Padre Tenório e de Domingos Teotônio Jorge
que não temia a morte - e só
temia a posteridade- e deixo ao seu irmão Vigário
as postas de carne do alferes esquartejado.

E deixo o frade, poeta e professor de Geometria
Frei Joaquim do Amor Divino Caneca
do Ceará às Alagoas
cantando sonetos para sempre ao pé do cadafalso
na praça das Cinco Pontas aos poetas do país.

Deixo o campo da Pólvora aos arcabuzados de Fortaleza
os capitães das armas e o Padre Gonçalo Inácio
de Albuquerque Mello - dito Mororó
ao seu coração varado e os dedos decepados a bala.

Deixo a Abdias e os seus a cabeça degolada do rei morto
dito Zumbi, lavada pelas mulheres de sua raça
nas águas do rio Mundaú, União dos Palmares, Alagoas.

Um marechal mandou desenterrar
o corpo do Padre João Ribeiro
degolar o cadáver e espetar a cabeça por dois anos
no Pelourinho do Recife - deixo esta cabeça - por grinalda
à cidade noiva da revolução, aos Barros Mello
e aos ribeiro Mello (raça minha)
a cabeça ao luar- sua açucena- ao sol
estrela da manhã no azul do azul do céu
entre o firmamento e o mar.

Deixo o Pelourinho da Bahia à flor do sangue
do peito do Padre Miguelinho e Domingos José Martins
e Antônio Henriques e os outros
entre arcabuzes de 17 - e deixo as ruas ensanguentadas
aos enforcados esquartejados ao galope dos cavalos do rei
Francisco Peregrino e Amaro e os Albuquerques
também de 17 e os outros.

E deixo a todas as Américas esses Abreus e Limas
os olhos do Padre Roma sozinho em sua jangada
lendo seus salmos desde o mar de Olinda
passando pelas Alagoas para levantar os povos
chegou a Salvador para levantar a Bahia
onde o Conde dos Arcos levantou patíbulo:
o padre insurrecto engoliu os papéis com os nomes dos patriotas
e foi executado diante dos dois filhos na Praça do Pelourinho:

deixo a todos os pais, todos os filhos,
os olhos do fim do olhar desse pai, desses filhos,
na hora do arcabuz- e esse olhar um dia se fez chama
no rosto brasileiro do General Bolívar
nos Ayacuchos da libertação.

E deixo aos senhores de engenho o cepo de aroeira
em que foi cortado o pescoço da cabeça
de Manuel Bequimão no Maranhão.

Deixo ao campanário de todas as igrejas
dobres de sinos e aleluias pelos trezentos e sessenta padres
arcabuzados e enforcados
nas revoluções do Nordeste- e deixo
em missa solene e ofícios de matinas
um lírio de marfim - no rosto de Joana Angélica,
a bela abadessa atravessada a espada
pelo sargentão madeira,
ao defender com seu corpo o portal do Convento da Lapa
a honra de suas monjas e a independência da Bahia.

Deixo pâmpanos e pampas e coxilha e fronteira
aos dois Bentos do Rio Grande,
à glória de seus Farrapos
aos que perderam as batalhas mas salvam a honra
dos heróis que aguentam
pelear em retirada e com pouca munição.

Não deixaram ao alferes
nem mesmo seu boticão
mas eu, poeta, deixo,
a cada vivo seu morto,
e a cada morto um caixão
uma campina no campo
na cidade um quarteirão,
seja macho, seja fêmea,
seus sete palmos de chão,
memória de vida e morte
com seu nome e seu brasão.

Deixo à raça de Caim a herança de Caim.

Autor: Gerardo Mello Mourão em "A Invenção do Mar".

Um comentário:

  1. Salve! Salve! todos os movimentos sociais aqui saudados e salve, inclusive, os movimentos que ainda faremos...

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Ternura Sempre...