22 de março de 2009

MONÓLOGO COM ÁLVARO DE CAMPOS

Álvaro _ Nunca conheci quem tivesse levado porrada.Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
Razek_ Sempre conheci que tivesse sofrido. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em nada.
Álvaro_ E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, indesculpavelmente sujo,
Razek_ E eu tantas vezes louco, tantas vezes triste, tantas vezes só, eu tantas vezes impreterivelmente idealista, misericordiosamente realista.
Álvaro_ Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, que tenho sofrido enxovalhos e calado, que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Razek_ Eu, que tantas vezes tenho tido impaciência para comer, Eu, que tantas vezes continuo sendo esdrúxulo, chato, que sequer tenho colocado meu pés em tapetes e muito menos sei o que é etiqueta, que tenho sido fiel, leal, autêntico e paciente, que tenho sentido gargalhadas e chorado, que quando não tenho chorado tenho sido mais triste ainda.
Álvaro_ Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco; eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Razek_ Eu, que sempre respeitei às criadas de hotel, por entender que suas profissões são tão dignificantes quanto a de um tradutor de poetas, eu que tenho ouvido atentamente as conversas dos moços de fretes, eu que não posso fazer vergonhas financeiras porque sequer tenho crédito para pedir emprestado, eu, que tenho evitado a hora do soco chegar para não ter que revidar, eu, que tenho sofrido a desesperança das coisas grandes e nem por isso as considero menos ridículas quanto aquelas pequenas coisas ridículas, eu percebo que tenho par em tudo isso neste mundo, principalmente, naquilo que diz respeito as injúrias, falácias e injustiças.
Álvaro_ Toda gente que eu conheço e que fala comigo, nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...
Razek_ Toda gente que conheço e que me cumprimenta ou não, sempre teve uma desilusão, sempre sofreu por um momento ridículo em suas vidas, até mesmo aqueles que foram príncipes na vida.
Álvaro_ Quem me dera ouvir de alguém a voz humana que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;que contasse, não uma violência, mas uma covardia!
Razek_ Quem me dera ouvir de alguém a voz humana que fizesse não um gesto de paz, mas de rebeldia que entoasse não uma canção, mas uma revolução!
Álvaro_ Não, são todos o ideal, se oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos,
Razek_ Não, são todos o sumo da desumanidade humana. Quem há neste pequeno e infeliz planeta que me admita ser humano?
Álvaro_ Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Razek_ Pitomba! Estou farto de tanta gente!
Onde é que há poetas no mundo? Então sou só eu que sou infantil e louco nesta Terra?
Álvaro_ Poderão as mulheres não os terem amado,podem ter sido traídos – mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,como posso eu falar com meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Razek_ Poderão os amigos os terem abandonados,podem ter sofridos - mas loucos nunca! E eu, que tenho sofrido sem ter sido louco como posso falar com meus comparsas sem vacilar? Eu, que tenho sido inumano, humanamente desumano,desumano no sentido caótico e imbecil da humanidade.
Álvaro_ Não: não quero nada.Já disse que não quero nada.
Razek_ Certo: Eu quero tudo.Tudo que ao povo for digno
Álvaro_ Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer.
Razek_ Não me venham com mais verdades, A única verdade é lutar.
Álvaro_ Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica!
Razek_ Não me tentem corromper! Não me tragam bom senso! Pra fora de mim a nanociência
Álvaro_ Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas das ciências (das ciências, deus meu, das ciências!) - Das ciências, das artes, da civilização moderna.
Razek_ Não me empoleirem sistemas quânticos, não me empalhem com ídolos ou heróis do espaço( dos esportes, povo meu, dos esportes!) - das novelas,das bolsas de valores,da tecnologia moderna.
Álvaro_ Que mal fiz eu aos deuses todos? Se têm a verdade, guardem-a!
Razek_ Que luta travei com os povos todos?
Se querem igualdade, conquistemo-na!
Álvaro_ Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Razek_ Sou um doido, pois preciso da loucura pra suportar tanta crueldade. Fora disso sou poeta e não me importo senão me consideram. Com toda esta miséria, pra que mais um poeta?
Álvaro_ Não me macem, por amor de Deus!
Razek _ Não me vendo, nem por Deus, nem por amor ao dinheiro!
Álvaro_ Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos , a vontade. Assim, como sou, tenham paciência! Vão para o diabo sem mim, Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Para que haveremos de ir juntos?
Razek_ Queriam-me, passivo, morno, inerte e cínico? Queriam-me tudo isto e mais alguma coisa, nem se eu fosse Pessoa, daria-lhes este sossego, não adiantaria,não sou sagaz, levem o inferno daqui ou fiquem neste inferno por mim! Nunca seremos companheiros mesmo.
Álvaro_ Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.Já disse que sou sozinho! Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Razek_ Se querem me prendam! Algemem meu braço. Não estou sozinho! Vocês sabem que estou sozinho? Que absurdo! Pensarem que sou o único!
Álvaro_ Ó céu azul – o mesmo da minha infância - Eterna verdade vazia e perfeita! Ó macio tejo ancestral e mudo, Pequena verdade onde o céu se reflete! Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Razek_ Ó revolução dos meus cândidos amores,venhas triunfar nesta manhã sem brilho, tua certeza,tua ternura, trava a morte.Só tu tens a pira que ilumina a vida, iluminai! Anunciação dos povos.Tudo protestais, tudo conscientizais, tudo sois que eu não me entrego.
Álvaro_ Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo... E enquanto tarda o Abismo e o silêncio quero estar sozinho!
Razek_ Este não é o fim. Que a paz tarda e nunca chega! Pois, enquanto meu povo não vem, quero resistir.
Álvaro_ Coitado de Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa! Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
Razek_ Coitado de Razek Seravhat, tão sozinho e melancólico. Coitado dele que nem sequer pena de si mesmo consegue ter!
Álvaro_ E, sim, coitado dele! Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam que são pedintes e pedem, porque a alma humana é um abismo.
Razek_ É sim, é só coitadinho! Tão vítima ele, que muitos que são tristes e entristecem que são suicidas e se enforcam porque a vida humana é vil.
Álvaro_ Eu é que sei. Coitado dele!
Razek_ Eu me importo, mas não tenho piedade dele!
Álvaro_ Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma! Mas até nem parvo sou. Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais. Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Razek_Que insulto querer-me um burguês, teórico e moderado, nem acadêmico eu sou! Nunca sequer freqüentei escolas de letras, ou tenho conhecimento científico: sou anticapitalista.
Álvaro_ Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Razek_ Não me queiram convencer de mais esta asneira: sou anticapitalista.
Álvaro_ Já disse: sou lúcido Nada de estéticas com coração: sou lúcido Merda! Sou lúcido
Razek_ Já disse: sou anticapitalista. Nada de poesias teóricas ou abstratas: sou anticapitalista. Pitomba! Sou anticapitalista.

( Razek Seravhat)

Comentário
Certa feita entreguei este trabalho a um conhecido e ele disse que isto era suicídio literário e que eu deveria rasgá-lo, porque com Pessoa não se mexe. Não entendo, não é o contrário? Espero que o leitor possa deleitar-se com esta intertextualidade, criticá-la, dar boas risadas e se ela servir para construir um pouco de consciência na sua história de vida ficarei satisfeito, afinal somos amantes da literatura. Ah, Só pra registrar, esta releitura foi feita inspirada em poemas como Lisbon revisited e Poema em linha reta de Álvaro de Campos.

Com respeito, Razek. Ternura sempre!

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